Em 15 de fevereiro de 2006, a Presidência da República, no uso da atribuição que lhe confere o artigo 62 da Constituição Federal, editou a Medida Provisória de n.º 280, cuja finalidade precípua seria a alteração da legislação tributária no âmbito federal. No entanto, e a partir daí já apareciam as primeiras anomalias, encontrava-se mascarado em seu artigo 4º outras alterações legislativas que não de matéria tributária, as quais, inclusive, já foram devidamente (ou não) revogadas por uma nova medida provisória, esta já sob o número 283, de 23 de fevereiro de 2006.
A MP 280, de 15 de fevereiro de 2006, por meio de seu artigo 4º, atribuiu nova redação aos artigos 1º, 2º e 3º da Lei 7.418/85 (que dispõe sobre o vale-transporte e dá outras providências), estabelecendo que referido benefício poderia ser pago em pecúnia. Ato contínuo, aproximadamente uma semana depois, a Presidência da República, tendo em vista forte pressão e manifestação contrária de políticos e importantes entidades sindicais, editou a MP 283 (23 de fevereiro de 2006), que veio a revogar o artigo 4º da MP 280, ou seja, restabelecendo a situação anterior, onde não era permitido o adimplemento do vale-transporte em pecúnia/dinheiro.
Destacados os dispositivos legais pertinentes e suas respectivas finalidades, necessário breve abordagem acerca do princípio da separação dos poderes, para posteriormente, passar a análise crítica da postura que vem adotando o Poder Executivo Federal.
O Princípio da Tripartição dos Poderes, muito bem pensado por MONTESQUIEU e adotado na Constituição Federal de 1988, cinge-se na repartição das atribuições do Estado, onde cada um de seus três poderes possui funções específicas e inter-relacionadas. Nesse esteio, em linhas bastante simples, ao Poder Legislativo cabe principalmente a criação das leis, ao Poder Executivo sua respectiva aplicação e ao Poder Judiciário a fiscalização de seu fiel cumprimento.
Apesar das atribuições precípuas a que cada um dos poderes do Estado são vinculados, a estes são também concedidos, extraordinariamente, funções típicas dos demais. Por retratar exatamente o tema sob análise, cita-se como exemplo a possibilidade do Poder Executivo legislar por meio das medidas provisórias, nos termos do artigo 62 da CF/88.
Da previsão constitucional a pouco citada, constata-se que a expedição das chamadas medidas provisórias está vinculada a existência de relevância e urgência na matéria a ser abordada, ou seja, indispensável a presença de tais requisitos para efetivação da medida (ato de legislar) por parte do Poder Executivo, sob pena de estar-se a praticar efetiva inconstitucionalidade e verdadeira usurpação de competência do Poder Legislativo.
No entanto, a despeito de expresso mandamento constitucional, a realidade mostra com evidência que encontra-mo-nos diante de uma infinidade de MPs, que são baixadas quase que semanalmente desprovidas da relevância e urgência que lhe são imprescindíveis, tudo isto, na maioria das vezes, em razão do mero desejo e conveniência do Governo Federal, o que vem a cada dia mais caracterizar referida usurpação de competência legislativa por parte do Executivo.
A Medida Provisória 280 é o melhor e mais recente exemplo de tal prática, até porque, apesar de visar a alteração da legislação tributária federal, dissimulou modificação no benefício do vale-transporte, precisamente em seu artigo 4º. Tanto fora assim que de sua exposição de motivos sequer consta justificativa para correlata modificação, havendo tão somente fundamento para as alterações na tabela do imposto de renda.
Dito tudo isto, pergunta-se: qual a necessidade de urgência em permitir que os empregadores possam repassar o correspondente ao vale-transporte em pecúnia??? Não estaria o Governo Federal, mais uma vez, visando beneficiar a classe dos empregadores (grandes contribuidores seus)???
Certamente, no caso sob análise, além de haver praticado verdadeira usurpação de competência legislativa, hábito este que vem sendo constante, restou incontroversa a tentativa por parte da Presidência de beneficiar a classe dos empregadores em desproveito dos trabalhadores, principalmente porque visou retirar destes últimos, direito adquirido com muito suor.
Tão impensada e absurda fora a MP 280, que menos de uma semana após sua publicação, a Presidência "deu o braço a torcer", e editou a MP 283, revogando-a no que se referia ao benefício do vale-transporte.
Felizmente, a mal-falada postura do Governo Federal (de editar medidas provisórias promiscuamente), pelo menos desta vez (MP 283), veio para o bem dos trabalhadores, visto que restabeleceu direito adquirido à percepção do vale-transporte.
Importante ainda destacar que critica-se aqui a forma pela qual vem sendo instituídos, inseridos, e revogados, por meio de medidas provisórias, os dispositivos legais, até porque, na maioria das vezes, tais instrumentos introdutores de normas encontram-se desprovidos da relevância e urgência que lhes devem ser peculiar, e vem servindo, inclusive, para satisfazer interesses de classes específicas.
O que não se pode permitir é que o Poder Executivo continue a invadir de tal forma as competências originariamente conferidas ao Poder Legislativo, a ponto inclusive de editar medidas provisórias absolutamente inconstitucionais, e ainda, beneficiar determinadas classes da sociedade.
Além da questão da usurpação de competência aqui tratada, tamanha gravidade reside também nas inserções de dispositivos legais, através de medida provisória, que não apresentam sequer uma mínima relação de correspondência com a matéria abordada em referido ato normativo (MP), prática esta que também vem se mostrando corriqueira.
artigo de:
Victor Pontes de Maya Gomes
Sócio do escritório Pontes & Cardoso Advogados, pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET e em Planejamento Tributário e Societário pela Associação Paulista de Estudos Tributários - APET.